O Tribunal Superior do Trabalho reafirma o pioneirismo que o norteia com a promoção de audiência Pública destinada a recolher subsídios à solução de problemas surgidos com a expansão do fenômeno “terceirização”.
Na década de 1980, alarmante quantidade de reclamações trabalhistas, ajuizadas por empregados cujos direitos haviam sido fraudados por empresas prestadoras de serviços, levaram o TST a uniformizar a jurisprudência. Assim surgiu o Enunciado nº 256, que decretou ser ilegal a contratação de mão de obra através de intermediário, salvo nos casos de trabalho temporário e serviços de vigilância, ambos regulados por leis específicas. Constatada a fraude, isto é, pessoalidade e subordinação direta, a sentença determinava o transplante do contrato individual de trabalho, da empresa contratada para a contratante dos serviços, com todos os ônus daí decorrentes.
A partir da vigência da Constituição de 1988, que impôs o concurso para investidura em cargo ou emprego público (art. 37, II), tornou-se impossível aplicar a parte final do Enunciado, quando a tomadora-contratante fosse estatal ou sociedade de economia mista.
Exigido a rever jurisprudência, o TST aprovou, após demorados debates internos, o Enunciado nº 331, cujos resultados teriam sido excelentes não houvesse a inserção, no inciso III, da expressão “atividade-meio”, por oposição a “atividade-fim”. Assim ficou o texto fruto do consenso: “Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 26.06.83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta”.
A impossibilidade de se traçar nítida distinção entre atividade-fim e atividade-meio converteu o enunciado nº 331 em inesperada fonte de dificuldades para empresas e entidades acossadas por ações civis públicas destinadas a impedi-las de contratar serviços especializados: “Nós somos nossa própria penitência”, filosofou Terêncio (185-159 a.C.).
A primeira tentativa de legislar sobre terceirização deu-se em agosto de 1986, quando o então Presidente José Sarney enviou ao Legislativo proposta que lhe submeti como Ministro do trabalho, e da qual surgiu o Projeto de Lei nº 8.174/86 (Mensagem nº 472/86). Problemas mais graves enfrentados pelo Congresso Nacional, àquela altura investido no papel de Assembleia Nacional Constituinte, e o advento do Enunciado nº 256 condenaram o projeto ao esquecimento.
Normas sobre terceirização existem em razoável quantidade. É o caso da Lei nº 4.886, de 9 de dezembro de 1965, que “regula as atividades dos representantes comerciais autônomos”. Ou da Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, que “dispõe sobre a profissão de empregado doméstico”. Afinal, o que é a empregada doméstica senão alguém a quem são delegadas responsabilidades que, originariamente, caberiam à dona da casa? Por desejo, ou necessidade, a dona de casa transfere a terceiro, ou terceira, tarefas que lhe caberiam, mas que não quer, ou não pode desempenhar diuturnamente.
Registram-se, ainda, os casos clássicos do trabalho temporário e serviços de vigilância. Temos a Lei nº 9.472/97 cujo art. 94 faculta, na execução de serviços de telecomunicações, o repasse a terceiros de atividades inerentes, acessórias ou complementares, bem como a implementação de projetos associados (incisos I e II). Inerente significa, segundo os dicionários, algo que está, por natureza, inseparavelmente ligado a alguma coisa ou pessoa, ou que lhe é ligado estruturalmente. Em outras palavras, corresponde à atividade-fim.
No setor público, recordo o Decreto-Lei nº 200/67, elaborado pelo Ministro Hélio Beltrão. O art. 6º relaciona como princípios fundamentais da Administração Pública (i) planejamento; (ii) coordenação; (iii) descentralização; (iv) delegação de competência; e (v) controle. Descentralizar é terceirizar, como se extrai da redação do art. 10. Do mesmo modo, a Lei nº 8.666/93, que trata de licitações e contratos da Administração Pública, não permite duvidar dos seus objetivos, quando, no art. 2º, refere-se à contratação de terceiros para obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações. Exemplo clássico de terceirização na Administração Pública é a concessão de estradas de rodagem, com o direito de cobrança de pedágio, cuja arrecadação será investida em obras de conservação. Parcerias público-privadas regidas pela Lei nº 11.079/94 demonstram à saciedade o sucesso da terceirização. A privatização de aeroportos, mediante oferta em leilão, é a mais recente iniciativa no sentido da descentralização ou terceirização, adotada pelo Governo Federal. O Banco Central possui resolução em que relaciona atividades terceirizáveis, como a do correspondente bancário, faculdade da qual se beneficiam o Banco do Brasil, instituições financeiras privadas e vastíssima clientela. No estado de São Paulo, a Lei nº 11.668/04 cuida de parceria entre o Poder Público e a iniciativa privada.
A “terceirização” é, na verdade, a designação que hoje se dá ao velho contrato de prestação de serviços, reconhecido pelo Código Civil no capítulo em que arrola os diversos tipos de contrato. Não deve ser confundida com subcontratação ou locação de mão de obra. Entre a prestação e serviços e o contrato de trabalho, a distinção reside no fato de a primeira hipótese tratar de negócios entre pessoas jurídicas, enquanto na segunda a contratada é necessariamente pessoa física, de acordo com a conhecida definição do art. 3º da CLT. Na prestação de serviços, as partes possuem capital, estatutos, personalidade jurídica própria, experiência, conhecimento, equipamentos e empregados, ao passo que na subcontratação o que se verifica é fornecimento direto de trabalhadores. Exemplo clássico de subcontratação, por interposta pessoa, é o trabalho volante do boia-fria na colheita de cana-de-açúcar ou da laranja, fenômeno em processo de extinção, no qual a intermediação tem sido incumbência do “turmeiro” ou “gato”.
O aperfeiçoamento do Enunciado nº 331 passa, necessariamente, pela retirada da controvertida expressão atividade-meio, e inclusão, no inciso III, de novas atividades, além da limpeza e conservação, nas quais a terceirização é inevitável. São excelentes exemplos as terceirizações de publicidade e propaganda, serviços jurídicos, fornecimento de refeições, telemarketing, manutenção de obras, concretagem, assistência médica domiciliar e de saúde, análises clínicas, medicina diagnóstica, fisioterapia, logística, promoção de vendas, atividades intelectuais e científicas, fornecimento de matéria-prima industrial e agroindustrial, corretagem de imóveis.
A diversidade de situações nas quais a validade do contrato de prestação de serviços é abertamente reconhecida e prestigiada leva-nos a concluir que a terceirização não pode ser encarada como prática ilícita, a ponto de atrair a intervenção do Ministério Público da União.
A modernização do Enunciado nº 331, tarefa reservada ao TST, trará solução a problema que, há décadas, desafia a letargia do Poder Legislativo. Aguardam os jurisdicionados que, fiel à tradição inovadora, o Tribunal tranquilize as relações entre empresas tomadoras e prestadoras de serviços, e ponha fim às complicadas, onerosas e intermináveis demandas em torno da distinção entre atividade-fim e atividade-meio.
Afinal, como ensina o Código Civil, no art. 981, atividade-fim da sociedade, onde se organizam pessoas físicas e jurídicas, participando com bens ou serviços, outra não é senão a partilha dos resultados, ou seja, o rateio de lucros.
Autor: Almir Pazzianoto Pinto é advogado. Foi Ministro do Trabalho e Presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
Fonte: Revista Consulex