O ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra da Silva Martins Filho, é um homem que conhece profundamente a legislação trabalhista, como também, a literatura. Desde a adolescência, já lia os clássicos da literatura portuguesa e mundial. Aos 14 anos, por exemplo, leu “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, “O Mestre dos Mares” e “Band of the Brothers”. Ele admite que essa literatura alavancou a sua formação – “ter um norte de como agir em cada situação, sem reclamar das circunstâncias, mas aproveitando-as a nosso favor”. Ele ressalta que a perspectiva de que existe uma providência divina, que faz tudo cooperar para um fim maior, ajuda a estar sempre otimistas, “procurando cumprir da melhor forma possível o papel que nos foi confiado”.
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, em 1981, e também Mestre em Direito pela Universidade de Brasília, em 1991, é ministro do TST, desde outubro de 1999, onde preside a 7ª Turma e Comissão de Jurisprudência e Precedentes Normativos.
É professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS) e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados do Trabalho, onde foi o primeiro diretor. Também é membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho e da Academia Paulista de Magistrados. Tem 13 livros na área de Direito, Filosofia e Literatura.
Na entrevista que segue, o ministro fala sobre a flexibilização da legislação trabalhista, como também do mercado de trabalho, inclusive da terceirização em termos trabalhistas. Discorre sobre a estabilização da economia e o sindicalismo, a guerra da sociedade com o crime organizado, ressaltando que o populismo cresce por falta de discernimento quanto a argumentos falaciosos, “com a memória curta quanto a ações que destoam dos discursos políticos e a satisfação com ações de mero assistencialismo acabam contaminando a consciência de cidadania da população”.
A flexibilização das leis trabalhistas pode ser uma forma para enfrentar essa crise econômica?
A CLT tem 68 anos. É um dos códigos de trabalho, ainda em vigor, mais antigos do mundo, só perdendo para os da França, de 1910, do Paquistão, de 1934, dos Estados Unidos, de 1938, e da Guiana, de 1942. Pretender aplicá-la rigidamente a uma economia globalizada, informatizada e com o dinamismo próprio dos avanços tecnológicos do século XXI parece-me a receita certa para a geração de crises cíclicas de desemprego, crescimento da informalidade e perda da competitividade no mercado internacional.
Prevalece o paternalismo?
Se a própria OIT estimula a negociação coletiva como melhor forma de se estabelecerem normas e condições de trabalho, pelos próprios agentes econômicos, como o faz nas Convenções 98 e 154, por que a convicção de que o Estado sabe melhor do que trabalhadores e empregadores o que é melhor para eles? Isso se chama paternalismo e só contribui para uma sociedade imatura e um sindicalismo de fachada. A Constituição Federal de 1988 prestigia a negociação coletiva e admite expressamente a flexibilização de jornada e salários nos incisos.
Então o senhor não concorda em que a rigidez das normas trabalhistas possa ser a receita certa?
A legislação trabalhista é, obviamente, protetiva do trabalhador, mas, quanto mais rígida, menos protetiva será, especialmente em tempos de crise. Um assessor meu, professor universitário, costuma lembrar em suas aulas que o capacete do operário da construção civil só o protege porque é de plástico e conta com um sistema interno de couro e almofada, capazes de absorver o golpe, deformando- se o capacete, mas preservando o seu portador. Se fosse de ferro, a rigidez do capacete faria a pancada reverberar imediatamente na cabeça, provocando o trauma craniano indesejável. O mesmo se passa com o arcabouço jurídico protetivo do trabalhador. Se for rígido demais, servirá apenas para preservar-se a si mesmo como legislação, mas não conseguirá gerar empregos e garantir os direitos mínimos ao trabalhador.
A principal característica do mercado de trabalho no Brasil é uma profunda mudança na estrutura do emprego?
Não só do Brasil, mas do mundo. Em seu livro “O Mundo é Plano”, Thomas Friedman mostra como, na atualidade, todo trabalho, que puder ser informatizado, poderá ser terceirizado e prestado em qualquer parte do mundo, como acontece com radiografias tiradas nos Estados Unidos durante o dia e analisadas na Austrália durante a noite. Ou os call centers de empresas americanas, operados por trabalhadores na Índia. Ora, a terceirização é um fenômeno econômico universal e irreversível, ligado ao foco das empresas em suas áreas de especialização. Sua face perversa deve ser combatida, pela garantia dos direitos mínimos aos trabalhadores, mas não mediante a simples tentativa de voltar ao passado e pretender empresas mastodônticas e desfocadas.
Por que a terceirização assusta em termos trabalhistas?
Porque, por um lado, não permite a plena integração do trabalhador na empresa para a qual presta efetivamente serviços. E, por outro lado, especialmente no campo do serviço público, a prática tem demonstrado que as empresas prestadoras de serviços, mormente de copa, cozinha, vigilância, limpeza e conservação, são meras intermediadoras de mão de obra, com uma salinha, telefone e computador, para contratar pessoal e já repassar ao órgão público tomador dos serviços. Mas, de um momento para outro, somem do mercado, deixando os empregados sem receber os salários e o órgão sem os serviços. Sem falar no loteamento nas licitações e na mudança de empresa de fachada, com a manutenção dos mesmos empregados no órgão público. Uma senhora da limpeza do TST perguntou, certa vez, porque haviam trocado o seu uniforme, se estava tão novinho. Nem percebera que a empresa anterior havia desaparecido e que ela estava agora trabalhando numa nova, recém-licitada. É duro reconhecer, mas “em casa de ferreiro, espeto de pau…”.
O que fazer então, para evitar esses efeitos perversos da terceirização?
O que o TST e o próprio Supremo estão procurando adotar como medidas, como também o TCU, é reconhecer a culpa da administração pública na escolha de empresas inidôneas e exigir uma maior fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas, tributárias e previdenciárias, antes de repassar o dinheiro pelos serviços prestados. Recentemente, foi instituída a conta vinculada no âmbito da administração federal, para que se possa ter o controle e eventual resgate do que for pago à empresa prestadora de serviços e não repassado aos trabalhadores.
Com a estabilização da economia o sindicalismo perdeu a força?
O problema do sindicalismo brasileiro parece insolúvel. Todas as reformas tentadas até o momento têm sido frustradas pelas próprias lideranças sindicais. Concordam, em tese, em acabar com a unicidade sindical e com a contribuição sindical compulsória de todos os trabalhadores e empresas para os sindicatos vigentes, mas quando projetos nesse sentido vão ao Congresso Nacional, deixam de apoiá-lo. Afinal, quem quer perder essa facilidade de ter dinheiro fácil e garantia de monopólio de representação sindical no seu setor? E depois dizem que é necessária a intervenção constante da Justiça do Trabalho para anular acordos feitos em detrimento dos trabalhadores por sindicatos fracos e não representativos. Sempre será assim, se a estrutura sindical brasileira não for mudada.
A que o senhor atribui essa explosão dos problemas sociais?
À falta de crença da população na seriedade das instituições. Fala-se muito em ética e denuncia-se muito a corrupção nos mais diversos níveis. O problema não é a corrupção que existe em todos os países. O problema é a impunidade. Atuei durante dois anos como membro do Conselho Nacional de Justiça e o que me entristeceu foi ver que, se a corrupção é mal endêmico nas estruturas do Legislativo e do Executivo, mal combatida, duro é vê-la nos quadros daqueles que deveriam ser o espelho da Justiça. Louvo a ação corajosa da ministra Eliana Calmon e de seu antecessor como Corregedor Nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, no sentido de apurar desvios éticos no âmbito do Judiciário, pois se aquele que vai julgar e punir os desmandos nos outros poderes também está mancomunado, então não há mais o que fazer.
A sociedade está perdendo a guerra contra o crime organizado?
Penso que está começando a ganhar. A ação recente de subida nos morros do Rio, em operação conjunta da Polícia com as Forças Armadas, deu nova esperança à recuperação da credibilidade das instituições. No fundo, o grande problema do Brasil é de educação e de formação moral. A chamada “Lei de Gérson”, que ganhou foros de cidadania em nossa terra – é preciso levar vantagem em tudo – faz com que se desrespeitem os direitos alheios, se descuidem da solidariedade e se vivam num mundo inseguro, de abundância de uns à custa da miséria de outros.
Por que o populismo faz tanto sucesso no Brasil, inclusive nos grandes centros?
Justamente pelo baixo nível de formação escolar da população brasileira. A falta de discernimento quanto a argumentos falaciosos, a memória curta quanto a ações que destoam dos discursos políticos e a satisfação com ações de mero assistencialismo acabam contaminando a consciência de cidadania da população. Em livro que reeditei recentemente pela LTr Editora, chamado “História do Brasil – Resumo Esquemático”, procuro relembrar fatos do passado remoto e recente que intrigam e fazem com que nos perguntemos: quando seremos um país sério? Quando perguntaram a um jardineiro inglês qual a explicação para a beleza daqueles jardins palacianos, respondeu: “É simples: adubamos a terra, plantamos a semente, regamos, podamos, voltamos a adubar, regar e podar… isso por 400 anos…”. Nossa sociedade está amadurecendo. Nossa democracia vai se consolidando, mas não podemos retroceder, voltando a fórmulas políticas que já se mostraram ineficazes e deletérias no passado.
“Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, foi sua leitura, aos 14 anos. Qual foi a influência para o senhor?
Desde menino o gosto pela história, incutido por meu pai, serviu de norte para poder, conhecendo o passado, compreender o presente e vislumbrar as opções para o futuro.
“Guerra e Paz” e outros romances históricos, como “O Mestre dos Mares” e “Band of Brothers”, têm servido de exemplo para em situações similares, ter um norte de como agir em cada situação, sem reclamar das circunstâncias, mas aproveitando as a nosso favor. E a perspectiva de que existe uma providência divina, que faz tudo cooperar para um fim maior, ajuda a estar sempre otimistas, procurando cumprir da melhor forma possível o papel que nos foi confiado na função que ocupamos no momento.
O senhor lançou recentemente o livro “Ética e Ficção”. Qual o gosto especial por esses temas?
Tanto a literatura de ficção quanto a histórica e filosófica sempre foram as minhas paixões. Desde a ficção do passado, como “O Senhor dos Anéis”, quanto a ficção do futuro, plasmada em “Jornada” ou “Guerra nas Estrelas” sempre forneceram material para muita reflexão, como a luta real entre o bem e o mal no mundo e dentro de nós mesmos, pelo exercício das virtudes. Como magistrado, o tema da “Ética” é essencial. É interessante notar como John Rawls, revisitando Aristóteles, pode resumir tão bem a essência da atividade do juiz e, podemos dizer, de todo homem: decidir, em cada momento, pela virtude da prudência, qual o direito a dar e o dever a cumprir, pela virtude da justiça, vencendo as tentações do medo, pela fortaleza, e do desejo, pela temperança. No fundo, é o que o Código de Ética da Magistratura Nacional resume na virtude da integridade: só o juiz íntegro é capaz de viver a imparcialidade sempre, suportando todas as pressões exteriores e interiores para satisfazer outros interesses que não sejam os da justiça.
E quanto a competência?
Mas não bastam a competência e a retidão ao magistrado ideal. Se justiça tardia é injustiça, é de fundamental importância a aquisição, pelos magistrados, de capacidade gerencial de seus processos. O jurista é diferente do juiz. Aquele doutrina, este compõe conflitos e harmoniza relações. Para isso, não são necessárias laudas e laudas de sentença, mas dizer que “sim” ou que “não” à demanda e o “porquê”.
E o que vem a ser o Estado Laico?
Um Estado que, sem privilegiar ou adotar nenhuma religião como oficial, valoriza o fenômeno religioso como componente existencial do ser humano e respeita a liberdade religiosa. Estado Laico, portanto, não é Estado ateu. Os símbolos religiosos que aparecem em órgãos públicos não são apenas a expressão de uma determinada fé, mas principalmente emblemas de uma cultura, em que os valores cristãos aparecem como os mais transcendentes e, portanto,representativos de ideais.
Como colocar em termos de razões públicas?
Recentemente, realizou-se em Brasília o “Seminário Internacional sobre o Estado Laico e a Liberdade Religiosa”, organizado pelo CNJ, com a participação de expoentes como os professores Jorge Miranda, Massimo Introvigne, Kent Greenawalt, Rafael Stanziona de Moraes e Daniel Sarmento, entre tantos. O que mais se notou nas exposições, marcadas pelo pluralismo de visões,foi a comum convicção de que as intervenções de entidades religiosas em temas sociais merecem reconhecimento, quando colocadas em termos de razões públicas, ou seja, quando traduzidas em argumentos racionais e não de autoridade.
Fonte: www.brasiliaemdia.com.br